domingo, 30 de setembro de 2012

Partida (parte 3)



   -O que está acontecendo Lu? - Letícia perguntou enquanto olhava desesperada para a irmã mais nova.
   -Estou morta... - ela disse, de costas para Letícia e ignorando os gritos de Lara - E você vem comigo.
   -Eu não quero morrer! - Letícia gritou, remexendo-se no lugar onde estava grudada. A garota observou o ambiente colorir-se para um azul escuro e ficar completamente preto onde estava Luna. Sentiu um calafrio e envolveu o peito com os braços.
   - E você acha que eu queria? -Luna gritou no meio das lágrimas -Não quero ir sozinha... - a voz tremeu - Tenho medo...
   Luna encarou Letícia, Luna queria correr e abraçar Letícia, correr e agarrar a mãozinha de Lara, para irem embora daquele lugar. Letícia desviou o olhar da irmã e encarou o ponto que se encontrava adiante. A superfície infinita, na completa escuridão, um lugar gelado.
   - Por que Lara está aqui? - Letícia perguntou, torcendo nervosamente as mãos. A distância entre ela e a irmã mais velha eram grandes, queria descansar a cabeça em seu colo, enquanto Luna trançava seus cabelos, tentando resolver seus problemas diários. Sentiu um nó na garganta.
   - Ela também presenciou a morte Lê... Imagine uma garotinha de apenas seis anos nessa escuridão, sozinha, enquanto nós estávamos em coma naquele maldito hospital.
   - Se ela conseguiu sair daqui, ou melhor, "ressuscitar" você também consegue Lu...
   - Não é tão simples assim - Luna cerrou os punhos e limpou as lágrimas com as costas da mãos - Eu já morri, meu coração parou de bater, Lara não chegou no nosso estágio.
   - Que estágio?
   - Está vendo as diversas tonalidades do azul - Luna apontou a completa escuridão enevoada, o preto que estava, o azul escuro de Letícia e o azul bem clarinho onde estava Lara, que continuava a gritar - Quando Lara quase morreu estava em um azul mais claro que o seu. Mas ela conseguiu, não teve tanta dificuldade como a gente. Você tá quase morrendo Letícia!!
   - Mas o que aconteceu? Por que estamos aqui? - Letícia gritou, segurando o choro.
   - Você não se lembra? - Luna se virou e os olhos estavam vermelhos e inchados -você que foi a culpada dessa desgraça Letícia!
   Letícia mordeu os lábios tentando se lembrar. Desde que se encontrará no hospital, suas memórias eram superficiais e sem sentido. Sentiu o corpo fraco, se lembrou do carro e a mãe dormindo no banco de frente do passageiro.
   - Eu não me lembro... - Letícia agachou-se, pondo as mãos na cabeça.
   Luna grunhiu. De repente, Letícia sentiu o corpo se mover, as pernas formigaram e sentiu o corpo mais fraco e debilitado; a pequena voz de Lara ecoava ainda mais longe. Letícia deixou o corpo pender um pouco, os pés continuavam fixos no chão, tocou no misterioso espaço em que se encontrava. A superfície era frágil, parecia uma gelatina, era escura com alguns pontos brilhantes, como uma noite estrelada. Levantou a cabeça e encontrou Luna bem mais próxima. A irmã a encarava com um olhar sonolento e ao mesmo tempo perverso, os cabelos dourados dançavam ao ritmo do vento.
   - O que está... - Letícia grunhiu ainda agachada. Tossiu, a tosse era seca, acompanhada de sangue. Reuniu todas as energias para virar o rosto e encontrar a pequena irmãzinha no único espaço claro e com vida do ambiente - O que está acontecendo?! - Letícia falou novamente, agora com mais energia e convicção, tossindo um pouco de sangue.
   Luna virou o rosto e olhou um ponto fixo inexistente ao longe, voltou novamente o olhar para irmã e estendeu a mão fina e elegante. Letícia franziu a testa, mas tocou de leve a mão dela. Uma onda de emoções serpenteou por seu corpo, sentiu que iria explodir. Todas as imagens vieram a tona.
   Ela mais a família estavam voltando para casa depois do final de semana com os tios e primos. Estava escuro e a estrada estava com pouco movimento, o pai dirigia enquanto escutava uma música lenta, a mãe estava com a cabeça encostada no vidro enquanto repousava, Lara estava do lado direito da parte de trás do carro, com o mesmo livro sobre o colo e a cabecinha encostada na porta do carro, enquanto escorria um pouco de saliva da boquinha entreaberta. Letícia estava no meio, com a expressão entediada e Luna, ao seu lado, estava com fones enquanto visualizava a estrada escura ou um ou outro carro que passava. Letícia observou a irmã e um sorriso malicioso brotou de seus lábios finos, pegou um fio do cabelo de sua irmã e começou a fazer nós no fio dourado. Vendo que a irmã não se dava o trabalho de nota-la começou a mexer nos fios do fone, Luna virou o rosto encarando-a com os olhos vermelhos de sono.
   - Pare! - ela falou e voltou a cabeça á estrada. Letícia sorriu triunfante e tirou os fones da irmã com violência. Assim, começou a discussão, os gritos acordaram Lara que começou a chorar e chamar pela mãe que acordou sobressaltada, mas que continuava sonolenta. O pai que estava com a cabeça pendendo de uma lado para o outro levou uma cotovelada de Luna, perdendo o controle do carro.
  Letícia começou a chorar, as lágrimas caiam na superfície escura e gelatinosa e se dissolviam rapidamente, sentia o corpo cada vez mais fraco, com um ultimo esforço levantou o rosto para encarar, com vergonha o semblete da irmã mais velha.
   - Foi tudo culpa sua. Eu morri por sua casa. Lara, o papai e a mamãe quase morreram por causa de você, querendo chamar a minha atenção!!! - Luna cuspia as palavras - Agora você vem comigo também.
  Letícia sentiu as faces corarem. Toda aquela confusão foi por sua culpa, uma menina entediada pela viagem querendo provocar a irmã mais velha que sempre idolatrará.
  - Desculpa... - Letícia sussurrou, observando novamente os finos dedos de Luna estenderem para ela.
  Sentiu o ímpeto de segurar as mãos da irmã, o corpo não aguentava mais as emoções e a dor.
  Ao longe, Letícia escutou a voz doce da irmã mais nova a chamando. 

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